Por: Bernardo Sollar Godoi
18 de maio é conhecido como o Dia da Luta Antimanicomial, uma data que carrega consigo a marca da luta pela afirmação da vida das pessoas com sofrimento psíquico. Trata-se de um movimento social que busca dar visibilidade e reivindicar diretos para pessoas que tiveram suas histórias marcadas por estigmas, injustiças e negligências.
Quem muito lutou para mudar esse cenário foi, dentre outros, o psiquiatra italiano Franco Basaglia. Ele percebeu que a humanização dos hospitais psiquiátricos significava, na verdade, a própria destruição dessas instituições. Isso, por conta da presença frequente de violências praticadas nesses lugares, de forma implícita ou explícita. Único caminho, então, possível: liberdade e crítica social. Esse foi o seu projeto de Psiquiatria Democrática.
A Reforma Psiquiátrica brasileira, muito influenciada pela proposta italiana, seguiu a mesma direção, principalmente a partir de 2001, com a Lei 10.216. Os dispositivos extra-hospitalares começaram a ser implantados em território nacional nessa época, e os leitos dos hospitais psiquiátricos fechavam gradativamente. Aqueles dispositivos se expandiram e promoveram, cada vez mais, a reinserção social de pessoas com um histórico profundo de exclusão. Assim, do paradigma hospitalocêntrico, passa-se para um paradigma de rede de atenção psicossocial.
No entanto, os ventos mudaram. Desde 2016, a Reforma Psiquiátrica sofre um desmantelamento gradual com as alterações nas políticas federais de saúde mental. Infelizmente, não podemos dizer que tais posturas são sem precedentes. E, justamente por esse motivo, temos a consciência da intencionalidade que abriga tais atitudes: segregação da diferença. Cito aqui algumas ações do desmonte: aumento da centralidade do hospital psiquiátrico na atenção à saúde mental; desvinculação da política sobre álcool e outras drogas da pasta da Saúde e exclusão da estratégia de Redução de Danos; cadastramento de comunidades terapêuticas para recebimento de financiamento da União etc. Essas e outras mudanças mostram o caráter segregador e proibicionista que a política brasileira vem encaminhando assuntos de saúde.
Os hospitais psiquiátricos possuem um histórico de devastação da subjetividade dos internos (para isso, sugiro assistir o documentário “Holocausto brasileiro” ou livro homônimo, de Daniela Arbex), as políticas proibicionistas se apresentam ineficazes e as comunidades terapêuticas são alvos de suspeita pelo Conselho Federal de Psicologia, por práticas, no mínimo, divergentes a uma atenção psicossocial adequada. Para mais detalhes, recomendo a leitura do artigo “Retrocesso da reforma psiquiátrica: desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019”, de Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado, e o manifesto e memorial do Conselho Federal de Psicologia junto com a Asociação Brasilera de Saúde Mental (Abrasme) acerca dos retrocessos.
Tendo isso em vista, a mobilização do Dia da Luta Antimanicomial se faz ainda mais necessária: trata-se de um ato político, que instiga vários setores da sociedade, contra o desmanche de políticas a favor do convívio com a diferença.
Dessa forma, gostaria de expor aqui algumas contribuições de alunos do Curso de Psicologia para esse dia de resistência pela liberdade. Apresento, então, ao leitor alguns trabalhos desenvolvidos pelos estudantes que cursaram a disciplina de Saúde Mental comigo no segundo semestre do ano passado:
Ser diferente é um crime?
Por: Amanda Pereira, Bruna Moreira, Débora Brito, Débora Pena e Talita Dias
Desde sempre a humanidade exclui e rejeita aquilo que não entende, ou o que é diferente do padrão, não é mesmo? Se você for cristão deve saber que durante mais de 200 anos, o Império Romano perseguiu, prendeu e torturou os cristãos. Se você é judeu ou conhece um pouco de história deve saber que esse povo foi perseguido desde a Antiguidade até recentemente pelo nazismo, onde durante a 2° Guerra Mundial culminou o Holocausto, genocídio de mais de 6 milhões de pessoas. Poderíamos citar várias religiões e povos que foram perseguidos, presos e mortos durante a história da humanidade. Sempre aquilo que é diferente do aceitável tem a tendência de ser excluído, um grande exemplo são os “loucos”, estes que durante toda a história foram, de maneiras diferentes, separados das pessoas normais. Afinal, o que é ser louco?
Atualmente, a loucura pode ser entendida como uma doença, tendo sempre em vista um teor negativo. Mas nem sempre foi assim, ela já foi vista como o sinônimo de liberdade durante o final da Idade Média, em que os loucos viviam em estado livre na sociedade e eram exaltadas antes de serem dominadas. Entretanto, a loucura como fenômeno é relatada, inicialmente, na Antiguidade grega e romana, junto a outras tantas doenças classificadas como práticas mitológicas, manifestações sobrenaturais motivadas por deuses e demônios. Nessa época, a loucura era identificada pela influência da ideologia religiosa e pela força dos preconceitos sagrados.
No entanto, independentemente de como definimos a loucura precisamos ter a certeza de que não podemos perseguir e torturar os “loucos”. Você pode dizer que nunca faríamos isso, pode se assustar com a ideia de em pleno século XXI existir a possibilidade do governo e as pessoas perseguirem alguém como aconteceu em outros momentos, mas você sabia que isso foi realidade poucos anos atrás? Há menos de 50 anos ocorria no Brasil algo tão desumano quanto as perseguições antigas e tão monstruoso que foi chamado de “Holocausto Brasileiro”.
Os deserdados sociais chegavam a Barbacena vindos de todo os lugares do Brasil, eles lotavam os vagões de carga do trem. Cerca de 70% não possuíam diagnóstico de doença mental, eram pessoas epiléticas, alcoólatras, prostitutas ou simplesmente pessoas que se tornavam incômoda para quem tinha mais poder. Nessa tragédia, os pacientes internados à força foram submetidos ao frio, à fome e a doenças. Foram torturados, violentados e mortos. Seus cadáveres foram vendidos para faculdades de medicina, e as ossadas comercializadas. Não se pode negar que, de certa forma, acontecia o que hoje se chama de eutanásia social ou mistanásia, em que esses pacientes eram deixados para morrer ou estavam condicionados a uma morte miserável.
O sistema manicomial era muito hierarquizado e os pacientes excluídos da sociedade, onde sofriam diversas agressões. O silêncio predominava o ambiente. O funcionamento rígido vindo de uma opressão um tanto violenta, gerava corpos domesticados identificados com uma rotina restrita. Um local sem vida, sem movimento, expressado em tristezas e sem conhecimento. Poucas vezes, o que se podia ouvir eram apenas gritos de dor oriundos de eletrochoques.
Um dos exemplos de perda de identidade e sanidade mental relatada em Barbacena é o de um homem que se manteve calado por 21 anos dos 34 em que ficou internado, ele era considerado mudo por todos, mas um dia ao soltar a voz em uma apresentação da banda de música foi indagado por um funcionário do por que ele não disse que falava, e sua resposta foi simples – “Uai, ninguém nunca me perguntou”. O relato estampa claramente o modo como os internos eram tratados com indiferença e não recebiam atenção necessária para se sentirem um pouco mais dignos e humanos.
A desinstitucionalização não é apenas desospitalização, nem apenas o fim do manicômio, visto que o mesmo era apenas uma expressão material do pensamento social de uma época, de modo que a retirada desta instituição não irá alterar o modo de pensar nem o modo como as relações se dão, com base em submissão e violência. Existem novas formas de enfrentamento às mudanças ocorridas no mundo globalizado e pautado pelo neoliberalismo, mas a luta deve ser embasada nos princípios do SUS e na defesa da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, onde os atores do processo (usuários, familiares, trabalhadores, entidades profissionais e sociedade civil, entre outros) possam exercer a convivência e a tolerância na luta por reconhecimento de solidariedade e de direitos. As entidades profissionais são agentes importantes na luta pela defesa do ideário da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, visando ao empoderamento dos trabalhadores de saúde mental.
As políticas públicas de saúde mental devem elaborar leis que contribuam para a melhoria no atendimento dos serviços e benefícios para os usuários, transformando aquilo que é individual em ações coletivas, garantindo assim seus direitos sociais. A prática em saúde mental é uma responsabilidade social e deve se relacionar ao desenvolvimento histórico da sociedade.
Hoje, a atenção à saúde mental é tão importante quanto a saúde física, pois vê-se o homem em sua totalidade, biopsicossocial. O atendimento ao portador de sofrimento mental passa por vários processos de transformação, da institucionalização para a implantação de serviços de atenção psicossocial. Mostrar que ainda há muito para mudar, mas precisamos ter em mente que é preciso sempre evoluir e nunca esquecer o passado para que o mesmo erro não se repita, afinal ainda hoje há pessoas que defendem a volta dos manicômios. Certamente sem imaginar a história e as condições em que as pessoas sobreviviam lá.
Apesar de todos os avanços através da luta antimanicomial, ainda há muito o que se fazer quando o assunto é a saúde mental. Infelizmente, o tabu em relação aos cuidados psiquiátricos ainda existe e pode haver resistência e estranhamento em relação aos tratamentos necessários. Por isso, é muito importante que todos nós sejamos semeadores de afeto através da boa informação, elucidando conceitos e ajudando a quebrar os estigmas relacionados à saúde mental. Cuidar de si também é cuidar dos outros. Para esses males, é preciso escuta sensível dos sujeitos que sofrem, cuidado integral, serviços abertos aos usuários, suas famílias, à comunidade e a seus problemas agudos e crônicos e, sobretudo, mudanças estruturais em uma sociedade cada vez mais desigual e intolerante.
Animação de Ádila Dorneles, Karla Carvalho e Verônica Pacheco sobre a história por trás da expressão “trem de doido”: https://youtu.be/gz2ve0ovXf4
Seu Zé
Por Karine Chaves Pereira
Seu[1] Zé é doido
Vive pelas ruas
Fala alto, mas ninguém escuta
Andarilho sem rumo, sem lugar
Nem nas ruas pode estar
Levado por livre e espontânea pressão
Pelas mãos do povo, da lei e da opressão
O cativeiro é o seu lugar
Lugar de doido é lá
Chamado de manicômio
Mania, maníaco, louco, sem tino
Ninguém o que visitar, senão a morte
Ela é o seu destino
Remédio, choque elétrico, exclusão
Pelo chão nu, sem banho, sem comida, sem direitos…
Direito de quê?
Não é gente, não tem razão
Mas quem é seu Zé?
O que seu Zé quer?
Seu Zé é humano, é gente, pensa, sente, sonha…
Do jeito dele vive
Quer ser feliz, que ser livre
Quer amor, respeito, abrigo, compreensão
Quer amar, realizar, viver
Quer ser ele, do jeito dele
Conhecer o mundo…
Sem limites, sem barreiras
Encontrar o seu lugar[2]
Texto por: Shirley Madlener e Vinicius Pinto. Ilustração por Vinicius Pinto.
Por fim, a fantástica intervenção de Ana Luisa Magalhães, Elisa Cristina Lopes e Roberta Dornelas Miranda:
Você já refletiu sobre quem são os(as) taxados(as) de “loucos(as)” na sociedade?
Quando pensa em um “louco(a)”, qual imagem te vem à mente?
[Aquele sujeito com comportamento estranho? Talvez com dificuldades em entrosar com os demais ou aquele que é alvo do riso e da piada dos outros? Que fala/faz algumas coisas sem sentido? Perigoso, sem pudor ou meio bobo? Que chama atenção por ser diferente e provoca em você talvez estranhamento, medo, incômodo, dúvida, curiosidade, vergonha, pena, repulsa, etc?]
Qual o(a) louco(a) habita o seu imaginário?
E se a gente te contar que a loucura nem sempre foi vista assim?
…
Tantos cantos tem o mundo,
Tantas vozes, povos,
Geografias e tempos.
Ah, o louco já foi (e é) muitas figuras!
(talvez até mais do que os seus próprios pensamentos o levem a acreditar).
Já foi sábio, santo, pecador…
Já foi inteligente, artista, transgressor…
Já foi doente, indigente, sonhador…
Já foi xamã, herege, desertor…
E falamos tudo isso pra trazer a reflexão:
O modo como vemos o mundo tem a ver com quando e onde estamos,
Com as normas vigentes, os pactos sociais, os valores existentes, as histórias contadas, documentadas, perpetuadas…
E pra não incorremos em uma postura ingênua,
Como se as coisas fossem mero produto do acaso,
Afirmamos:
Nossas lentes de ver o mundo são forjadas, minha gente,
De acordo com os interesses predominantes (e isso, claro, tem a ver com poder!)
Já pensou que desde sempre o que você vê e ouve vai sendo internalizado e gera os relevos que contornam as suas opiniões?
O que pensamos e sentimos a respeito da loucura não é neutro!
E as ditas “soluções” para este fenômeno também não são!
Se querem nos vender a ideia de que manicômios são necessários, nos perguntemos:
São bons para quem? Para quê?
Ousamos apostar que você estudou, na época da escola, as duas guerras mundiais, certo? Episódio violento, um triste marco na história da humanidade, no qual morreram milhares de indivíduos. Mas perguntamos, você também estudou a fundo a tragédia registrada no livro e no documentário “Holocausto Brasileiro”, que retrata a realidade do Hospital Colônia, em Barbacena, MG? Fizeram excursão com a turma da escola para visitarem o Museu da Loucura, lá situado?
Fazemos a suposição de que a maioria das respostas seja “não”
(e se for “sim”, conta pra gente sua experiência!?)
A questão é que aconteceu, r e c e n t e m e n t e, um genocídio em nosso país equiparado às atrocidades nos campos de concentração nazistas. Foram cerca de
80 anos e 60.000 mortes no Hospital Psiquiátrico de Barbacena!
Entre os internos estavam mulheres consideradas “problemáticas” por contestarem as imposições de pais e maridos, mulheres vítimas de estupro, homossexuais, mendigos, presos políticos, alcóolatras, crianças que davam muito trabalho para seus cuidadores, trabalhadores que não se “ajustaram” à exploração da força de trabalho… enfim, aqueles que fugiam à “normalidade” no sentido de norma-padrão-modelo, considerando-se sobretudo os apelos econômicos e morais. E, ao assistir os registros expostos no documentário, é possível perceber que a grande maioria das vítimas foram pessoas negras.
O que isso nos diz?
Houve encarceramento e punição (mascarada de tratamento) daqueles que ameaçavam uma dita ordem social.
Mas que ordem é essa? E a quem ela beneficia?
No documentário, algumas pessoas comuns – como a gente mesmo – trabalhadoras do hospital, se espantavam ao darem-se conta das atrocidades cometidas. Elas reproduziam ordens e acatavam o que as “autoridades” diziam ser adequado, muitas vezes sem pensar sobre suas parcelas de responsabilidade, mascarando as próprias contradições e dilemas familiares que lhes eram próximos, e sendo coniventes com uma solução que exclui e aniquila a subjetividade daqueles que são apontados como o problema.
E quais os perigos de não falarmos sobre o que aconteceu, sobre este período sangrento de nossa história?
Não nos responsabilizamos. Não aprendemos com os erros. Não respeitamos a dignidade das vítimas, nem mesmo por meio da memória e do reconhecimento. Ficamos com a impressão de que as estruturas sociais nos são dadas prontas e não nos conscientizamos de que são fruto de uma construção, em meio a contextos sociais, culturais, econômicos, políticos, históricos e geográficos.
E pra que este textão?
Se trata de um convite para aguçarmos nosso senso crítico, buscarmos o conhecimento por meio de diferentes fontes de informação, conhecermos a história do nosso país e as nossas biografias familiares, nos situarmos no mundo, entendermos as engrenagens sociais e refletirmos sobre nossos papeis e valores de vida. E, se nos permitirem mais um convite, que façamos isso a partir de uma perspectiva ampla,
com espaço para a diversidade dos modos de ser e de estar no mundo, para as diferentes possibilidades do existir – ainda que se diferenciem das nossas escolhas e características pessoais – e que, por motivo NENHUM, aceitemos a retirada da condição humana de qualquer pessoa.
DE TUDO O QUE JÁ SIGNIFICOU A PALAVRA “LOUCO”, QUE NUNCA MAIS DEIXE DE SER GENTE!
Com estas palavras, finalizamos a disciplina “Saúde Mental” e compartilhamos alguns aprendizados e desaprendizados facilitados pelo professor Bernardo.
Por último, te convidamos pra vir com a gente participar da luta antimanicomial!
Obs: A disposição “desconfigurada” dos parágrafos deste texto é proposital, com colunas centralizadas, outras à esquerda e à direita.
[1] O pronome de tratamento “Seu” expressa um respeito pela pessoa humana, sua dignificação como ser humano, pessoa e cidadão.
[2] O presente poema possui intencionalmente estrofes progressivas, sem formato padronizado. Uma crítica simbólica aos padrões estabelecidos pela sociedade.
Tem tido sonhos esquisitos? Saiba o motivo!
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Referências:
Artigo “Stela do Patrocínio e a poética da clausura”, de autoria de Tereza Virgínia de Almeida e Letícia de Bonfim. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 54, p. 277-295, maio/ago. 2018. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/10.1590/2316-40185415
Documentário “Holocausto Brasileiro”, dirigido por Daniela Arbex e Armando Mendz. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5eAjshaa-do
Imagens retiradas do acervo digital disponível no site do Museu do Inconsciente. Disponível em http://www.ccms.saude.gov.br/nisedasilveira/mostras-virtuais.php
Textos de autoria de Stela do Patrocínio disponível em https://www.escritas.org/pt/stela-do-patrocinio