Por: José Bruno Aparecido da Silva
O Gambito da Rainha, minissérie dirigida por Scott Frank, baseada na obra literária homônima de Walter Tevis, estreou em uma plataforma de streaming em outubro de 2020 e em pouco tempo já havia conquistado espectadores no mundo todo. Ambientava no universo dos campeonatos de xadrez, a produção fez aumentar a procura por informações sobre jogo na internet e por partidas on-line. E o sucesso não foi apenas de público, a minissérie também foi muito bem recebida pela crítica especializada.
A série retrata a trajetória de Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), desde sua infância em um orfanato, onde aprendeu a jogar xadrez com um zelador, até o início de sua vida adulta, com uma série de desafios, que envolvem partidas do jogo cada vez mais acirradas e lutas internas contra a dependência de medicamentos e de álcool. Paralelo a tudo isso, vemos retratada a situação da mulher na década de 60, período em que a maior parte da trama se desenvolve. Beth é uma intrusa em um mundo que era até então dominado quase que completamente por homens.
Mas, o que O Gambito da Rainha tem a ver com o Direito? Para responder a esta pergunta da melhor maneira possível, é necessário que voltemos a uma obra que é um verdadeiro clássico da teoria do Direito, “O Conceito de Direito” de H. L. A. Hart, autor que é um dos nomes mais importantes da escola positivista do direito. Hart compara o Direito a uma espécie de jogo, que possui regras pré-definidas que precisam ser seguidas por ambas as partes, seja qual for a lide (HART, 2018).
O jurista brasileiro Alexandre Morais da Rosa desenvolveu e aplicou uma teoria dos jogos ao processo penal, para ele, o processo penal pode ser visto pelas partes (players) como um jogo, no qual as estratégias podem definir os resultados, todavia, deve-se buscar, tal como nos esportes, o chamado fair play, que pode ser traduzido livremente como jogo limpo (ROSA, 2019). Em O gambito da Rainha o fair play pode ser visto no respeito pelas regras do jogo, mas também pelo adversário.
Sem regras claras conhecidas por ambas as partes, o processo deixa de funcionar como esperado. A figura do juiz não se confunde com a regra, neste ponto está uma contribuição importante do pensamento de Hart, que contraria os pressupostos da escola realista. O Direito não é aquilo que um juiz ou os tribunais querem que ele seja. O Direito é aquilo que o ordenamento diz que ele é.
Na concepção de Hart, o Direito estava nas normas positivadas e cada norma tinha outra anterior a ela que lhe conferia validade, sendo que na origem do ordenamento estaria o que ele chamou de regra do reconhecimento, esta seria similar a uma regra geral do jogo, que todos conhecem e respeitam, ainda que ele não esteja escrita.
Não é possível imaginar uma partida como as que são disputadas em O Gambito da Rainha sem o conhecimento prévio das regras do jogo. Se os adversários de Beth pudessem criar regras no meio da partida, ela jamais venceria, visto que o resultado do jogo dependeria exclusivamente de quem tivesse o poder de criar as regras.
Outro ponto interessante que merece ser observado é que nos campeonatos oficiais há um árbitro, que é o responsável por atestar a validade dos movimentos e consequentemente das vitórias. Hart compara os juízes a estes árbitros, a quem ele chama de marcadores. Os marcadores não são maiores que as regras, tão pouco podem modifica-las, assim como os jogadores, eles também estão sujeitos a elas (HART, 2018, p. 131).
Na prática, a inobservância das regras do jogo resulta em insegurança jurídica. Não existe justiça se não existe imparcialidade e equidistância entre o juiz e as partes e não existe equidistância e imparcialidade se o juiz constrói a regra conforme o caso específico.
Referências:
HART, H. L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.
O GAMBITO DA RAINHA. Direção: Scott Frank. Roteiro de Scott Frank e Allan Scott, baseado na obra de Walter Tevis. Produção de Scott Frank, Allan Scott e William Horberg. Estados Unidos: Flitcraft, Wonderful Films e Netflix, 2020. Disponível na plataforma de streaming Netflix.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 5. ed. Florianópolis: EMais, 2019.