José Bruno Ap. Silva
Muitos autores já se debruçaram sobre a relação entre direito e civilização, para alguns o direito surge com a civilização, para outros o direito é uma consequência da civilização e para outros ele pode ser anterior à civilização. Evidente que em algumas destas concepções a ideia de Direito não pressupõe um ordenamento complexo, com normas escritas ou advindas do costume, mas tão somente normas rudimentares que visavam punir determinadas condutas ou proteger determinados direitos, como, por exemplo, o direito à propriedade.
Um gênero do cinema clássico em especial retrata bem esta relação entre direito e civilização, o western. O termo em inglês significa “ocidental” e faz referência à fronteira entre o lado leste dos Estados Unidos e o oeste até então (no período em que as histórias se passam) ainda não desbravado. A região onde ainda não havia chegado a civilização era também chamada de oeste distante, ou far west no original, esta expressão daria origem ao termo aportuguesado “faroeste”.
Alguns elementos são característicos do faroeste como gênero e vários destes elementos estão presentes tanto na sua manifestação literária quanto na cinematográfica. Boa parte dos conflitos retratados em filmes deste gênero resulta do embate entre modelos sociais distintos, estando no centro um modelo baseado na concepção europeia de civilização e de outro lado, na posição de antagonista, qualquer indivíduo ou grupo que represente resistência a este modelo, o que inclui os fora-da-lei, vadios, negros e indígenas.
Os métodos do lado que representa a civilização são, contudo, muitas das vezes mais bárbaros que as ameaças que visam combater. O direito (a lei e o poder de punir) se concentra normalmente na figura do xerife e não raras vezes são retratados nestas obras casos de corrupção e de abuso de autoridade. Neste aspecto se percebe o risco de se concentrar em uma única instância (ou pior, em uma única pessoa) o poder de legislar, de atribuir penas e o de fazer cumprir estas penas.
A violência é, neste período, o meio mais eficaz de exercício da coercibilidade e, por conta disso, faz valer a sua vontade aquele que é mais rápido no gatilho ou que tenha maior número de aliados. É possível perceber que há direito e há normatização, ainda que rudimentares e frágeis, contudo, não necessariamente há justiça, pois não se busca a justa medida ou a ética das decisões, apenas a proteção de um direito, ainda que injusto, e a vingança particular.
Esta concepção de direito se encontra entre os dois modelos sociais em conflito, o da sociedade intocada pelo modelo europeu e o da sociedade supostamente mais avançada representada pela civilização existente ao leste do território. O direito visa, portanto, abrir caminho para o novo, mas frequentemente flerta com os interesses de quem lucra mais com a manutenção do modelo anterior que já se encontra em esgotamento.
Alguns elementos, dentre os citados no início deste texto, representam a chegada do novo, e dentre estes estão a expansão das linhas férreas, que reduz os isolamentos geográficos, o advento do telégrafo, que permite a comunicação com outras partes do país, e a chegada da imprensa, que passa a exercer em certa medida o papel de poder regulador.
Passado o período de ouro da Hollywood clássica, os filmes de faroeste começam a ganhar uma nova roupagem, mais crítica, mais engajada e menos maniqueísta. Surge assim o chamado western revisionista, cujas tramas descontroem estereótipos explorados exaustivamente nas décadas anteriores e revisam a posição de indígenas e negros, que por muito tempo foram vilanizados ou ridicularizados por obras do gênero. O revisionismo não deixou o gênero desaparecer por completo e também produziu obras de seminal importância para compreender o que o teórico André Bazin (2014) chamou de o gênero mais genuinamente americano.
O faroeste como gênero traz consigo inúmeras possibilidades de reflexão acerca do Direito, de sua construção histórica, sua eficácia e sobretudo dos meios pelos quais ele se exerce. Há nas pequenas cidades, onde normalmente esses filmes se passam, microcosmos que representam atores e construções sociais que ajudam muito a compreender fatos presentes também nas sociedades atuais, como a justiça popular (justiça feita com as próprias mãos) e o uso da violência como forma de exercício da coercibilidade.
Como não ver nas regiões e comunidades tomadas por traficantes ou milicianos uma extensão do modelo social representado nos filmes de faroeste? A falta de alcance do Estado, o exercício do poder pela força e o depósito da esperança em figuras supostamente heroicas, que em pouco se diferenciam dos bandidos, que se espera combater. Por incrível que pareça, os westerns estão mais atuais do que nunca.
Se o faroeste representa o processo de formação da civilização, outro gênero de grande relevância no cinema clássico representa o processo de deterioração de suas instituições, é o film noir, mas este é um tema para outra edição do Direito e Arte #NaSuaCasa.
10 filmes seminais para entender o gênero:
1 – Rastros de ódio (1956) de John Ford
2 – Matar ou morrer (1952) de Fred Zinnemann
3 – O homem que matou o facínora (1962) de John Ford
4 – Três homens em conflito (1966) de Sergio Leoni
5 – Era uma vez no oeste (1968) de Sergio Leoni
6 – No tempo das diligências (1939) de John Ford
7 – Meu ódio será tua herança (1969) de Sam Peckinpah
8 – Dança com lobos (1990) de Kevin Costner
9 – Os imperdoáveis (1992) de Clint Eastwood
10 – Django livre (2012) de Quentin Tarantivo
Referências bibliográficas:
BAZIN, André. O que é cinema?. Trad. de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2014