Em uma cidadezinha da Bretanha, no litoral do norte da França, mergulhada numa série crise econômica e em pleno declínio industrial, um homem chamado Martial Kermeur é preso, acusado do cometimento de um delito grave.
Durante uma longa audiência com o magistrado responsável pelo caso, Kermeur conta sua história, em retrospectiva. A narrativa aborda a sequência de atos dramáticos que culminaram com sua acusação e sua presença ali, no banco dos réus: o divórcio, o surto do filho adolescente e sua internação em um centro de recuperação para menores infratores, a perda do emprego e sobretudo, a chega do personagem Antoine Lazenec que, mediante a promessa de devolver àquela pacata cidade o progresso, convence as autoridades e os moradores locais a investirem suas indenizações recebidas em razão de um fechamento de uma fábrica recém fechada, em um empreendimento imobiliário de lazer e turismo que nunca saiu do papel.
Inúmeras áreas do Direito e temáticas jurídicas podem ser identificadas ao longo da narrativa em primeira pessoa do romance de Tanguy Viel. Elas vão desde o fechamento da fábrica e os pagamentos das indenizações trabalhistas aos seus empregados (Direito e Processo do Trabalho), o divórcio do personagem narrador (Direito de Família), o surto do seu filho e sua internação em um centro de menores infratores (Direito da Criança e do Adolescente) até o estelionato cometido em face de diversos membros daquela comunidade (Direito Penal), que é o pano de fundo e que dá o tom de toda a história.
Especificamente em relação ao Processo Penal, é importante destacar as diferenças entre o sistema de persecução penal brasileiro e o francês, retratado no livro. O depoimento é prestado na presença de um juiz de inquisição (ou de instrução), responsável pela produção da prova e formação da opinio delicti na fasepré processual, Também decide, neste momento, sobre a manutenção da prisão ou a concessão da liberdade do indiciado. É semelhante à figura do Juiz de Garantias, que se pretendeu instituir no Brasil com a Lei 13.964 de 24/12/2019, denominada “pacote anticrime”, mas cujos artigos estão suspensos por decisão do Ministro Luiz Fux, do STF.
Pode-se notar também que as declarações do indiciado são prestadas em um ato judicial semelhante ao que aqui se convencionou denominar audiência de custódia, uma garantia ao cidadão custodiado, também recém instituída no ordenamento jurídico pátrio. O livro faz questão de demonstrar a importância das declarações do Réu na construção da retrospectiva histórica do fato delituoso.
O livro também traz uma crítica ao mito da verdade real no processo criminal, já que a verdade sempre pertence ao tempo presente. O que se faz depois, em qualquer processo judicial, é uma reconstrução histórica dos fatos, com as limitações decorrentes das próprias garantias.
O título do livro faz referência a um dispositivo da legislação processual penal francesa, cujo significado só será revelado e contextualizado ao final. O livro inteiro tem uma prosa fluida e contêm profundas reflexões que prendem o leitor do início ao fim.
Assim, as conexões do romance Artigo 353 do Código Penal com o Direito são muitas, sendo uma leitura obrigatória para todos que estudam, pesquisam e trabalham na seara jurídica.
Referências Bibliográficas:
Khaled Junior, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.
Streck, Lenio Luis. O que é isto – decido conforme minha consciência? 4 ed. Ver. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
Viel, Tanguy. Artigo 353 do Código Penal. Tradução de Maria de Fátima Oliva do Couto. Rio de Janeiro: Rádio Londres, 2020.