Por: José Bruno Aparecido da Silva
“Casa Grande” (2014), filme dirigido por Felippe Barbosa, gira em torno de uma família nuclear pertencente à elite carioca. Formada pelos pais, Hugo e Sônia, e pelos filhos, Jean e Nathalie, a família leva uma vida de luxos, regalias e excessos. Contudo, esta situação começa a mudar quando Hugo passa a ter sucessivas perdas em seus investimentos na Bolsa de Valores. Não demora até que fique claro que a pompa ainda presente na rotina de cada um deles já não é nada além de mera aparência. A mesa do café se torna menos farta, os gastos dos filhos começam a ser controlados e surgem preocupações como a necessidade de apagar lâmpadas para economizar energia elétrica.
Cada um dos membros da família reage de uma forma diferente às mudanças impostas pela nova condição financeira: Hugo tenta minimizar o problema para o restante da família; Sônia, ciente da gravidade, tenta criar fontes alternativas de renda; Nathalie, apesar de ser a caçula e a menos ouvida na casa, em algumas passagens demonstra que tem ao menos uma noção vaga de tudo o que está por acontecer, ao contrário de Jean, que é pego de surpresa e isso explica o fato do foco do filme recair sobre ele.
Jean estuda no colégio São Bento, instituição particular destinada só para garotos, considerada uma das melhores e mais caras escolas do Rio de Janeiro, lá ele tem contato com adolescentes e jovens que vêm de realidades similares à dele e que têm visões de mundo também muito parecidas. Isso faz com que Jean viva em uma espécie de redoma, na qual ele é o centro, e nada ou muito pouco existe para ele além do vidro que o cerca. Tal alegoria se materializa na relação que Jean mantém com os empregados da casa, para ele, a existência de cada um deles se resume às atividades que desempenham em seu próprio mundo.
O corte de gasto afeta a rotina de Jean, sem motorista para levá-lo e buscá-lo na escola, ele se vê obrigado a ir de ônibus. E é no ônibus que ele conhece Luiza, garota que vem de um mundo bem diferente do dele. Apesar de ambos compartilharem parte do trajeto do transporte coletivo, ela estuda em um colégio público, o Pedro II, e mora em um bairro periférico. Luiza funciona na narrativa como um gatilho para que Jean vivencie uma espécie de rito de passagem e este rito consiste justamente na saída da redoma, onde ele sempre esteve.
“Casa Grande” aborda as questões de classe e perpassa por um tema muito em voga no atual momento: as cotas raciais e socioeconômicas. O tema vem à tona em várias passagens do filme, inclusive naquela que considero o ápice dramático da narrativa. E é justamente a discussão acerca da legitimidade das cotas que interessa ao episódio de hoje do Direito e Arte. A existência da política de cotas e de outras ações afirmativas atende à necessidade de busca pela igualdade material, considerada uma condição para a existência de um ordenamento justo.
Para que se possa compreender a igualdade material, é oportuno que se fale antes sobre a igualdade formal, sendo aquela que está prevista, por exemplo, na Constituição Federal de 88, que dispõe em seu Art. 5º que: “todos são iguais perante a Lei”. Considerando que na prática existem fatores externos ao indivíduo que o tornam diferente dos demais, é justo que esta diferença, que pode ser uma questão de classe social, etnia ou qualquer outro fator de segregação ou opressão, seja levada em conta na aplicação de políticas ou no oferecimento de serviços públicos.
Vale aqui lembrar a máxima de Aristoteles (2003), defendida no livro “Ética a Nicômaco”, que afirma que o justo seria “tratar o igual de forma igual e o desigual de forma desigual na medida de sua desigualdade”. Esta compreensão tem tudo a ver com a política de cotas, que, como outras ações afirmativas, surge para corrigir uma distorção social que afeta o indivíduo, mesmo estando alheia à sua vontade. Tem relação com a ideia de igualar a todos não na linha de chegada, mas no ponto de partida. No caso das cotas para ingresso nas universidades públicas, considera-se tal ingresso um ponto de partida para uma melhor inserção de indivíduos pertencentes a minorias no mercado de trabalho.
O tema é complexo e tem gerado debates acalorados, o filme, apesar de adotar um posicionamento acerca do tema, serve bem como instrumento de introdução da reflexão sobre o assunto. Independente se você concorda ou não com a política de cotas, assistir ao filme é uma experiência válida, visto que o diálogo dialético com a obra de arte pode ser útil para a construção de novos argumentos, ou ainda para que novas análises sejam feitas a partir de outro ponto de vista.
Referências:
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2003.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25 set. 2020.
CASA GRANDE. Direção: Fellipe Barbosa. Roteiro de Fellipe Barbosa e Karen Sztajnberg. Produção de Iafa Britz. Brasil: Migdal Filmes, 2014. Disponível na plataforma de streaming Netflix.