“A Caça” (2012), filme dirigido por Thomas Vinterberg, é uma daquelas obras de difícil digestão, mas necessárias devido à importância da abordagem que fazem de temas complexos e de grande relevância social. A busca por retratar a realidade de uma forma crua, sem tantos atenuantes, é uma marca da filmografia de Vinterberg. Ele, que em 1995 escreveu juntamente com Lars Von Trier o manifesto intitulado Dogma 95, se tornaria um nome seminal deste movimento e do cinema dinamarquês como um todo.
O Dogma 95, movimento nascido do manifesto feito por Vinterberg e Trier, propunha uma volta aos primórdios do cinema e para tal apresentava regras rígidas que buscavam ir de encontro ao modelo de cinema comercial adotado em Hollywood. Dentre as regras estavam, por exemplo, a proibição do uso de luz não natural e o uso de trilha sonora apenas diegética (aquela que toca no contexto da cena que está sendo filmada). Estas regras não se limitavam ao aspecto técnico, afetando também a escolha dos temas abordados e o estilo da narrativa.
Do rigor do Dogma 95, abandonado por ambos os cineastas que o idealizaram, “A Caça” herdou apenas a busca por retratar a realidade de forma não romanesca ou glamourizada. O seu tema central – uma falsa acusação de abuso sexual – é, obviamente, indigesto. Definitivamente não é um filme indicado pra quem busca mera distração ou o escapismo característico do cinema mainstream. Contudo, será um deleite para quem aprecia grandes atuações e roteiros que fujam dos lugares comuns.
O personagem principal, brilhantemente interpretado pelo ator Mads Mikkelsen, é um professor que passa a cuidar de crianças no jardim da infância após perder seu emprego anterior. Sua vida vira ao avesso após ele ser injustamente acusado de ter abusado de uma garotinha, a filha de seu melhor amigo. Na trama, ele é a grande vítima, ele é a caça à qual o título do filme faz referência. Os caçadores são ex-amigos, ex-colegas de trabalho e outros membros da sociedade na qual até então ele era respeitado é estimado.
Apesar de não manter o seu foco sobre as questões de natureza judicial e passar apenas superficialmente por algumas das fases do inquérito policial, que se encontra em andamento, o filme possui grande relevância para reflexões acerca de temas relacionados ao direito. Dentre uma gama de questões que podem ser discutidas a partir de sua narrativa, uma em especial merece destaque: a condenação prévia feita pela opinião pública; fenômeno que constitui uma expressão daquilo que Scuro Neto (2010) conceitua como justiça popular.
Na estória contada, não basta ao personagem provar às autoridades que é inocente, ele precisa se libertar também da reprovação de seus próprios pares, com o agravante de que, neste caso, a aplicação das penas não sucede a condenação, ela vem antes, e independe desta última, como se não restasse dúvidas da responsabilidade pela autoria do fato. A opinião pública constitui um tribunal à parte, um tribunal que não reconhece garantias, não concede direito ao contraditório e à ampla defesa.
É interessante notar que no intento de punir alguém que considera culpado, o indivíduo, tomado pela ânsia de fazer justiça com as próprias mãos, e de assim corrigir um erro social, acaba por cometer novos erros, dando ensejo à lógica da vingança privada, já abordada em um episódio anterior do Direito e Arte #NaSuaCasa, que faz com que a violência e os erros associados ao seu uso se perpetuem no tempo.
O filme e sua narrativa ganham maior importância em um período em que se tem discutido muito sobre o fenômeno chamado de “cultura do cancelamento”, que consiste no isolamento nas redes sociais e no mercado de trabalho de personalidades e até de anônimos que tenham cometido de erros graves a pequenos deslizes, que, na opinião de determinado grupo, sejam considerados merecedores de tal pena. Tal fenômeno surgido no ambiente web tem provocado mudanças significativas fora do mundo virtual, tem feito pessoas e corporações repensarem comportamentos e posicionamentos, todavia, há o risco de que, com os julgamentos prévios, injustiças sejam cometidas e danos de difícil reparação sejam provocados (SANCHES, 2020).
O tema é, portanto, atual e merece ser debatido por todos, não só por estudantes e profissionais do direito. Começar este debate com uma sessão de A Caça é uma grande pedida.
Por: estudante José Bruno
Referências:
A CAÇA. Direção: Thomas Vinterberg. Roteiro de Thomas Vinterberg e Tobias Lindholm. Produção de Zentropa Entertainments, Zentropa International Sweden e Film i Väst. Dinamarca/Suécia: California Filmes, 2013. 1 DVD.
SANCHES, Mariana. O que é a ‘cultura de cancelamento’. BBC, 25 jul. 2020. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/geral-53537542>. Acesso em: 02 ago. 2020.
SCURO NETO, Pedro. Sociologia geral e jurídica. 7° ed. São Paulo: Saraiva, 2010.