Série produzida por alunos do 8º período do curso de Direito da Univiçosa, José Bruno Aparecida da Silva e Diego de Castro, e orientada pelas docentes Ângela Barbosa Franco e Maria Antonieta Rigueira.
“Assim na terra como embaixo da terra“, de Ana Paula Maia (2017): um livro impactante, para ler em uma sentada só! A autora carioca venceu, em 2018, o prêmio São Paulo de Literatura com esta obra de 143 páginas, que é lida em um único fôlego.
A narrativa é ambientada em uma colônia penal isolada, desolada e porque não dizer também amaldiçoada (ela foi construída sobre uma antiga fazenda de escravos). Recebe homens condenados por homicídios, que cumpriam suas sentenças em outras unidades prisionais. Na obra, a colônia constitui uma alegoria do sistema prisional e do encarceramento como forma de punição, o que pode ser percebido no excerto a seguir:
“O confinamento de homens assemelha-se a um curral de animais. O gado é abatido para se transformar em alimento; os homens, por sua vez, são abatidos para deixarem de existir. Não é um lugar de recuperação ou coisa que o valha, é um curral para se amontoarem os indesejados, muito semelhante aos espaços destinados às montanhas de lixo, que ninguém quer lembrar que existem, ver ou sentir seus odores.” (MAIA, 2017, p. 97)
É um lugar perdido no espaço (pode muito bem estar localizado nos confins do Brasil, mas pode também se situar em qualquer outro lugar do planeta) e no tempo. Revela um presente angustiado pelos crimes e culpas do passado, sem qualquer perspectiva de futuro (só o fim, a terra que tudo devora). Ela será desativada em breve, por um oficial de Justiça enviado pelo Estado, e seus poucos prisioneiros sobreviventes serão transferidos. A espera por este servidor público amarra toda a história.
A construção dos poucos personagens da trama é muito bem elaborada pela autora. Tanto os guardas quanto os presos são rudemente e duramente humanos, com todos os paradoxos inerentes a essa condição (bondade/maldade, razão/emoção, medo/coragem, reflexão/instinto). Além do mais, a todo tempo, o enredo mostra a tensão e a forçada cordialidade existente entre agentes carcerários e sentenciados e revela como o ambiente de encarceramento vai se amalgamando às suas personalidades, produzindo dramáticos e irreversíveis efeitos.
As frases são curtas. O discurso direto é recorrente (há inúmeros diálogos no livro), o que dá muita dinamicidade e fluidez ao texto. O recurso dos flashbacks (volta ao passado de alguns personagens) também é utilizado e permite ao leitor uma compreensão imediata da razão de certas atitudes e comportamentos. A ambientação é muito importante, pois cria um contínuo suspense durante a leitura. As alegorias do javali e da caça aos presos são repletas de significados.
Desde o início do livro, a lembrança da novela “Na colônia penal“, de Franz Kafka (2011), vem à tona. Nas duas narrativas curtas, estão presentes os mesmos elementos: a atmosfera pesada e sufocante (uma sensação de bigorna a esmagar o peito), a opressão do humano pelo institucional e a relação do confinamento com a loucura.
Tanto o título do livro como algumas outras passagens (a frase escrita na entrada da colônia, por exemplo) levam o leitor a um plano metafísico, religioso, sendo inevitável pensar que a intenção é dar mesmo a ideia de expiação dos pecados. pela dor e pelo sofrimento.
Não há inocentes na história: não o são os Sentenciados que ali cumprem suas penas e não o são os agentes estatais que as executam. Todos são parte de um microssistema degradante e desumano, que a todos deteriora, massacra e engole. O livro nos permite questionar profundamente a opção pelo encarceramento massivo e as consequências dessa escolha, não só no Brasil, como no mundo inteiro.
Por: professora Maria Antonieta Rigueira Leal Gurgel
Referências bibliográficas:
KAFKA, Franz. O verdicto / Na colônia penal. Tradução: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
MAIA, Ana Paula. Assim na terra como embaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017.