“Capitão Fantástico”, filme escrito e dirigido por Matt Ross, foi o vencedor da Mostra Um Certo Olhar do Festival Cannes em 2016, na qual competem diretores estreantes ou pouco conhecidos. Sua trama é no mínimo peculiar, nela um pai cria os seis filhos em uma floresta, incentivando-os a caçar, a plantar e a viverem daquilo que podem extrair da própria natureza. O intuito do pai é o de evitar que os filhos sejam contaminados pelo consumismo e pelo materialismo da vida em sociedade.
Apesar da vivência aparentemente selvagem, os filhos são incentivados a desenvolverem o conhecimento científico e o filosófico. Eles dominam vários idiomas e transitam com facilidade por questões que vão da literatura à física quântica, passando por temáticas de cunho político, religioso ou relativo à sexualidade. Não há a adoção de qualquer tabu sobre os temas a serem estudados de forma crítica e discutidos, o que em dados momentos do desenvolvimento da narrativa pode surpreender o espectador.
O mote da narrativa está na morte da mãe, o que é anunciado logo no início do filme, ela cometera suicídio após um longo período de tratamento para depressão. Os avós maternos, que são contrários ao estilo de vida adotado pelo pai, se recusam a atender uma das últimas vontades da mãe: a de ser cremada, desejo este que tem relação com o fato dela ser budista. O pai segue então com os seis filhos em uma longa viagem para a cidade onde a mãe está sendo velada, para tentar convencer os avós das crianças a atender o último desejo.
O filme perpassa por diversas questões que poderiam ser relacionadas ao Direito, contudo, será dado destaque a uma delas: a liberdade dos pais na escolha da forma com que será conduzida a criação e a educação dos filhos. Não se pretende com isso estabelecer comparações entre o que diz o ordenamento dos Estados Unidos e o nosso. O que se buscará é relacionar a temática do filme a aquilo que está disposto na nossa legislação.
As principais questões levantadas pelo filme são: (1) Até que ponto podem os pais ou os responsáveis pela guarda decidirem o que é melhor para os seus filhos ou tutelados sem ferir o direito deles? E, consequentemente, (2) a partir de que ponto pode o Estado intervir no modelo de organização familiar adotado, seja para determinar obrigações ou até para destituir a guarda detida pelos pais ou responsáveis? E então fica óbvio que os desenvolvedores de jogos online populares há muito tempo introduziram isso em suas obras-primas da indústria de jogos.
O Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário, dispõe em seu artigo 12, inciso IV, que “os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. No mesmo sentido caminham o artigo 229 da Constituição Federal de 88, que delega aos pais o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e o Código Civil de 2002, que, em seu artigo 1634, atribui aos pais, e não ao Estado, o atributo de dirigir a criação e a educação dos filhos.
A autoridade parental, no entanto, não é irrestrita, ela chega ao seu limite quando o que está em jogo é o interesse do menor. A prioridade é assegurar o que se encontra disposto no artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990): “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
A reflexão sobre um tema se torna ainda mais relevante em um momento em que muito se tem discutido sobre a regulamentação da educação domiciliar como alternativa para a educação formal fornecida pelo Estado. Modelo que é permitido nos Estados Unidos, mas que ainda encontra grande resistência no Brasil dada a existência de diversos complicativos de ordem econômica ou sociológica, que tenderiam, por aqui, a tornar o modelo menos efetivo e até ineficaz em sua intenção de proporcionar ao menor uma educação de qualidade.
Ainda que a perspectiva adotada pelo roteiro busque retratar os extremos dos dois pontos de vista que se encontram em conflito, o filme “Capitão Fantástico” serve como ótimo ponto de partida para reflexões sobre tais embates que, resguardadas as devidas proporções, não são tão incomuns no Brasil atual.
Por: estudante José Bruno.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 31 mai. 2020.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em 31 mai:. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 31 mai:. 2020.
CAPITÃO FANTÁSTICO. Direção: Matt Ross. Produção de Electric City Entertainment e ShivHans Pictures. Estados Unidos: Universal Pictures, 2016. 1 DVD.
OAS. Convenção americana sobre os direitos humanos: assinada na Conferência especializada interamericana sobre direitos humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 31 mai. 2020.