Por Liz Valente*
É possível um objeto ser mais do que uma mera coisa? Que um objeto passe a ser um signo, um ente de valor subjetivo e conceitual? Nós acreditamos que sim, e temos um filósofo de peso para sustentar a noção de que os objetos podem ser significativos e passíveis de interpretação.
O filósofo Martin Heidegger, conhecido especialmente por suas contribuições no campo da ontologia, proferiu a palestra intitulada “Construir, Habitar, Pensar” durante um simpósio em Darmstadt, Alemanha, em 1951. O conteúdo da palestra foi amplamente divulgado e tornou-se um marco no pensamento filosófico sobre arquitetura e habitação, destacando-se por sua abordagem fenomenológica e pelo questionamento profundo sobre a essência do ato de construir e habitar.
Heidegger investiga os fundamentos da relação entre o ser humano e o espaço que ocupa, propondo que habitar é a condição essencial do ser humano, enquanto construir deve ser compreendido como uma expressão desse habitar. Ele explora a etimologia das palavras relacionadas ao tema e argumenta que “habitar” implica um cuidado pelo mundo e pelos outros, indo além de simplesmente ocupar um espaço físico.
A abordagem existencial de Heidegger parte da premissa de que o espaço construído é, em certa medida, uma extensão do ser. Para ele, mesmo em lugares que não são as moradas das pessoas, ainda assim elas habitam, na medida em que se apropriam desses espaços e criam nichos de experiências vividas.
Heidegger utiliza a noção de fenômenos, que correspondem aos acontecimentos vividos pelos seres humanos no espaço. O espaço afeta as pessoas, que, por sua vez, deixam marcas (rastros) de sua presença por onde passam. Os fenômenos espaciais podem ser enaltecidos na medida em que evocam o que Heidegger chama de quadratura (o céu, a terra, a mortalidade e a imortalidade), abrindo caminhos que, posteriormente, agrupam paredes e fechamentos. Essa abordagem filosófica, centrada na experiência sensorial do usuário, traz constantemente à tona a questão da presença humana no mundo, o que o autor denomina Dasein.
No pensamento heideggeriano, Dasein refere-se ao modo de ser específico do ser humano, aquele que é capaz de questionar e refletir sobre sua própria existência. A palavra pode ser traduzida literalmente como “ser-aí” ou “ser-no-mundo”, indicando a ideia de que o ser humano não existe de forma isolada, mas sempre em relação com o mundo ao seu redor e com o contexto no qual está inserido.
A partir dessas reflexões filosóficas, o exercício proposto buscou traduzir a noção de habitar como um ato essencialmente humano, integrando as dimensões sensoriais, temporais e simbólicas discutidas por Heidegger. Os estudantes foram desafiados a aplicar tais conceitos na criação de luminárias que evocassem a experiência de “ser-no-mundo”, não apenas como objetos funcionais, mas como elementos significativos que dialogassem com a existência humana no espaço.
Como parte dessa aplicação prática, cada grupo foi convidado a refletir sobre os objetos cotidianos que compõem a vida estudantil e a produzir uma luminária que fosse segura e feita de materiais simples. As luminárias deveriam refletir a presença humana no mundo, resgatando a conexão com os primórdios da civilização – quando o homem dominou o fogo e a luz para melhorar a qualidade de vida. Assim, as luminárias propõem uma nova experiência de “ser-no-mundo”, transformando as percepções do tempo ao “levar o dia para dentro da noite”.
O objetivo do trabalho foi destacar a presença humana no tempo e convidar as pessoas a se lembrarem de que o espaço construído existe pelo homem e para o homem. As luminárias desenvolvidas trouxeram uma abordagem lúdica e interativa, com estruturas autoportantes.
Os resultados deste trabalho, desenvolvido na disciplina ARQ104- Composição Formal na Arquitetura conduzida pela professora Liz Valente, podem ser conferidos nas fotos e textos a seguir, que mostram as luminárias desenvolvidas pelos estudantes acompanhadas de fragmentos dos textos elaborados para sua defesa. Todo trabalho arquitetônico possui um discurso teórico subjacente, uma motivação intelectual que direciona a forma e confere significado a ela. Nota-se, nas luminárias, uma diversidade de significados que transcende o uso primário de apoio lumínico, transformando-as em objetos significativos.
*Liz Valente – Arquiteta e Urbanista, professora no curso de Arquitetura e Urbanismo da Univiçosa. Ela também é multiartista sendo autora de peças de teatro, cantora, compositora e poeta.
Referências:
HEIDEGGER, Martin. “Construir, Habitar, Pensar.” Atas do Simpósio sobre Construção de Habitações Rurais, vol. 1, 1951, pp. 23-35.