Por: José Bruno Aparecido da Silva
“Alguém deve ter caluniado Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã”. Assim começa “O Processo” (2006), escrito por Franz Kafka e lançado originalmente em 1925, uma das obras literárias mais importantes do século XX. Desta simples introdução já é possível extrair alguns dados importantes. O primeiro vem da relação que ela tem com outra obra do autor, “A Metamorfose” (1915), aquela que talvez seja a sua obra-prima; ambas começam no momento em que seus protagonistas acordam e nas duas este despertar, que traz consigo o elemento surpresa, é apenas um prolongamento de um pesadelo, o que é reforçado pelo aspecto onírico que está presente em praticamente toda a obra de ficção do autor.
Outro ponto importante que também está presente já nas primeiras linhas é o fato de que Josef K., o protagonista, é inocente, ao menos perante a justiça dos homens. Alguns especialistas na obra de Kafka interpretam o “processo” que o personagem responde como uma alegoria da culpa advinda do pecado original. Contudo, o ponto que interessa à presente análise, feita a partir de uma ótica jurídica, é o fato de que, sendo réu, K. sequer sabe do que está sendo acusado, tão pouco quem é o autor da acusação.
Suas tentativas de chegar às instâncias superiores da justiça esbarram na burocracia das instituições, na má vontade de servidores e na falta de sentido de tudo o que ele vivencia. Esta falta de sentido se manifesta no caráter onírico que a narrativa adota, o que faz com que o próprio leitor se sinta preso dentro de um pesadelo, no qual elementos estranhos se juntam criando construções bizarras ou surrealistas.
Kafka eleva tudo à máxima potência do absurdo, seu objetivo, no entanto, é tratar de temas reais, dotados de relevância social para a época em que o livro foi escrito e para os dias de hoje. Em suas obras ele antecipou o mal-estar que facilmente se converte em angústia, tão característico da pós-modernidade. Pode-se afirmar que parte deste mal-estar decorre da pequenez do indivíduo diante das instituições que o governam e regulam.
Josef K. ocupa uma função de certo prestígio social, ele trabalha em um grande banco, no setor de financiamentos imobiliários (função que se assemelha à que o próprio Kafka exerceu por certo tempo em uma seguradora), ele é instruído, contudo, nada disso lhe garante acesso ao que busca. Ele continua sendo nada mais que um indivíduo pelejando contra todo um sistema, que ora aparenta ser desorganizado, ora parece ser deste modo justamente para impedir o acesso daqueles que lhe são indesejados.
No absurdo descrito na passagem abaixo fica claro o tom da crítica feita por Kafka ao judiciário de seu tempo, nela pode-se observar a supressão de vários princípios fundamentais para a efetividade da justiça como valor, dentre eles o princípio da publicidade, da ampla defesa, do contraditório e da imparcialidade e impessoalidade do juiz:
O acusado não podia olhar os expedientes, e era muito difícil estabelecer pelos interrogatórios o que haveria assentado nas atas, dificuldade esta ainda maior para os acusados que se encontravam distraídos e perturbados por toda a espécie de precauções. E ali era que intervinha a defesa. Em geral, não se permitia aos defensores assistir aos interrogatórios, mas depois destes, e possivelmente no momento mesmo de sair o acusado da sala de sessões, tinham de abordá-lo para inteirar-se por este meio do assunto, meio de informação as mais das vezes muito confuso para a defesa. Mas não era isso o mais importante, pois não era muito o que se podia saber deste modo […]. O decisivo, o que tinha verdadeiro valor, eram unicamente as relações pessoais, especialmente com funcionários superiores, com o que, certamente, o advogado entendia referir-se apenas aos funcionários da hierarquia inferior; ninguém senão eles podiam influir no curso do processo, se bem que a princípio apenas de um modo imperceptível, mas depois de maneira cada vez mais clara.
Em outra passagem, Kafka descreve a sala de espera dos advogados, um lugar estreito, baixo, cuja única entrada de luz era também por onde entrava uma fumaça repleta de fuligem. A sala ainda tinha, há mais de um ano, um buraco no seu piso, por onde poderia passar uma perna. As más condições, de acordo com o próprio narrador, visava prejudicar a defesa dos acusados. Neste ponto, nota-se que a precariedade não era um fruto da má organização, mas parte de um plano maior, que tornava a justiça mais poderosa quanto mais inacessível fosse. A consolidação deste poder pode ser percebida nesta outra passagem:
Era necessário procurar compreender que esse grande organismo de justiça era de certo modo eterno em suas flutuações, que se alguém pretendia mudar nele alguma coisa era como tirar-se ele próprio o solo de sob os seus pés e que ele mesmo é que se precipitava não queda enquanto o grande organismo, vendo-se apenas muito ligeiramente afetado por isso, conseguiria facilmente uma peça de reposição (sempre dentro de seu mesmo sistema) e permaneceria imutável se não acontecia que – e isso era até o mais verossímil – se tornava ainda mais fechado, ainda mais atento a tudo quanto acontecia, ainda mais severo, ainda pior.
Em outro momento da obra, um de grande importância, um personagem a quem K. pede ajuda lhe conta a história de um camponês, que ao tentar ingressar na justiça se depara um guarda em uma das portas de acesso, esta é apenas a primeira de várias portas e o guarda é o mais fraco dentre todos que vigiam cada uma delas. O camponês, que aguarda uma autorização de entrada, permanece por anos diante da porta, ele envelhece e em seu leito de morte o guarda, ao explica-lo porque durante tanto tempo mais ninguém tentou passar por aquela porta, lhe informa que aquela passagem fora feita para ele e que, sem mais razão de ser, ela finalmente seria fechada.
Nesta breve estória pode-se notar a crítica à morosidade da justiça e, além disso, o autor, novamente elevando a situação ao extremo do absurdo, aponta para a hipótese de que a justiça, desapegada da busca pelo justo como valor, se torna mero instrumento para impedir o acesso dos mais vulneráveis às instâncias de poder. Resguardadas as devidas proporções, ambas as críticas podem ser transpostas para o nosso tempo. Deste modo, o livro propicia a reflexão sobre os efeitos dos processos que perduram para além da vida das partes interessadas e sobre a seletividade da justiça.
Apesar de figurar dentre os grandes nomes da literatura mundial, Kafka nunca se viu desta forma, extremamente crítico e exigente em relação à própria escrita, ele chegou a entregar manuscritos de obras não terminadas a Max Brod, um de seus melhores amigos, solicitando-o posteriormente que as destruísse. Brod felizmente não o fez, após a morte de Kafka ele reeditou estes manuscritos e os publicou, dentre tais obras estava “O Castelo” (2008), outro clássico. O Processo, apesar de também ter sido lançado postumamente esteve entre as obras prediletas do autor, que faleceu antes de ter dado a ela o desfecho que considerava mais adequado. Deste modo, o final aberto presente na versão publicada não foi considerado definitivo por Kafka, mas isso em nada diminui a genialidade e importância da obra.
Referências:
KAFKA, Franz. A metamorfose seguido de O veredito. Porto Alegre: L&PM, 2007.
KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Martin Claret, 2006.