O livro “1984”, considerado a obra-prima de George Orwell e um dos romances mais importantes do século passado, foi lançado em 1949, quatro anos após o final da segunda guerra mundial, um período no qual ainda subsistiam regimes totalitários na Europa, como o franquismo na Espanha e o Salazarismo em Portugal. Diferente de “A Revolução dos Bichos”, também de autoria de Orwell, que fazia referência quase explícita a um regime específico, o da União Soviética, “1984” optou por fazer referência a regimes autoritários em geral.
Na história narrada, Winston Smith é um funcionário de uma das instâncias do governo que controla o superestado no qual ele vive, chamado de Oceania, os acontecimentos se dão no lugar chamado de Pista de Pouso Número 1, que, de acordo com o narrador, está localizada onde antes foi a Grã-Bretanha. A figura central do partido quer detém o poder é o Grande Irmão (Big Brother no original), seus olhos estão espalhados por todos os lugares e sua supervisão acontece 24 horas por dia.
O poder em Oceania é exercido por meio da força, mas também através do controle e manipulação do pensamento. O Ministério da Verdade, onde o protagonista trabalha, é o responsável pelas sucessivas revisões históricas e pelas explicações contraditórias que objetivam manter o povo sob controle, o que na trama recebe o nome de “duplipensamento”, que, de acordo com o narrador, seria a capacidade de um indivíduo alimentar ao mesmo tempo duas ideias contraditórias, sem dar conta da contradição.
O livro “1984” pode ser usado como ponto de partida para inúmeras reflexões que permeiam o campo do Direito. Por ora, optou-se por abordar a questão da vigilância e a sua antítese em relação ao direito à privacidade. Na estória contada, a vigilância serve para identificar opositores e ideias contrárias ao regime, todavia, por ser um elemento representativo da sujeição do indivíduo frente ao Estado, podemos transportar a reflexão para o mundo de hoje.
A nossa segurança, a dos outros e a do próprio Estado podem justificar a invasão de nossa privacidade? O monitoramento nos espaços públicos ou de livre acesso não é nenhuma novidade, é comum o uso de câmeras para vigiar ruas, praças e outros espaços de grande circulação de pessoas. O projeto Olho Vivo da Polícia Militar de Minas Gerais, que tem sido uma importante medida de prevenção e de investigação de crimes em diversas cidades do Estado é um exemplo disso.
Mas, e quando a vigilância permanece mesmo no espaço privado, ela pode ser justificada? Não é uma situação hipotética, ela, que já acontecia no caso das tornozeleiras eletrônicas para reeducandos, no contexto da pandemia de covid 19 passou a ser usada em outras circunstâncias, através do monitoramento via GPS da localização das pessoas, o que era feito tendo como referência a localização de seus celulares. Em São Paulo a proposta do governo do estado consistia em realizar o monitoramento após um acordo feito com as operadoras de telefonia móvel. Em diversas cidades o procedimento foi usado após o consentimento de cada pessoa. Mas, o que diz a lei sobre isso?
O art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 88 dispõe que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Já a Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, que trata dos direitos assegurados aos usuários de internet no Brasil, em seu Art. 7º, inciso I, traz a garantia do direito de “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Em uma situação de normalidade, tais dispositivos seriam o suficiente para barrar a proposta de monitoramento, mas, o atual momento não é de normalidade.
Em decisão recente, a ministra Laurita Vaz do STJ indeferiu Habeas Corpus coletivo impetrado contra a proposta de monitoramento do governo de São Paulo. Além de entender que o instrumento legal não era o adequado, ela ainda ponderou que a ameaça mencionada no pedido era apenas hipotética, quando para ter validade deveria ser iminente e demonstrada de forma plausível e objetiva (STJ, 2020). Há que se levar em consideração, no entanto, o conflito neste caso concreto entre o direito coletivo à saúde e o direito individual à privacidade e, neste caso, não é absurdo que o último seja flexibilizado em detrimento do primeiro.
A reflexão, contudo, deve ir além do período atual, que tem exigido flexibilizações e até ineditismos em algumas decisões. Dados os avanços tecnológicos e o constante impacto deles na vida das pessoas, as reflexões acerca do limite do monitoramento ou da validade do comando que o autoriza continuarão sendo relevantes para o Direito. E, ter uma distopia como “1984” no imaginário, pode tornar ao menos mais interessante a ponderação sobre quais caminhos não seguir.
Por: estudante José Bruno.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 31 mai. 2020.
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em 31 mai:. 2020.
STJ. STJ nega interromper monitoramento de celulares em SP. Brasília, DF: Portal STJ, 2020. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Ministra-nega-pedido-para-interromper-monitoramento-por-celular-em-Sao-Paulo-durante-a-pandemia.aspx>. Acesso em 31 mai:. 2020.
ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner, Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.